Por: Carmen Reinstein, Nutricionista, Empresária e Criadora do Nutrimenu. Uma apaixonada por nutrição e empreendedorismo. Data da publicação: 16/11/2023
Considerações e algumas implicações
Ponto de vista
Ao assistir nos últimos tempos a nutrição falar enfaticamente da importância de inserir em seu contexto nutricional, aspectos da gastronomia, não me surpreendi, pois como empresária há mais de trinta anos no ramo da alimentação, como chefe de cozinha, pesquisadora gastronômica, gourmet por escolha, fui levada aos braços da nutrição por um desafio e a paixão venceu. Na época, ouvi de algumas mestras que a nutrição não era a produção de alimentos e senti nisso até um certo ar de desdém.
Obviamente estava claro para todos que a minha seara não era a área clínica e que eu estava avançando por um caminho que não me pertencia. Tinha claro até este momento que meu interesse era restrito apenas a produção de alimentos e todas as suas implicações. Qual não foi minha surpresa que movida pela paixão da descoberta verifiquei que a Prescrição Dietética nada mais era do que a minha prática do dia-a-dia ao planejar cardápios, ao orientar meus clientes no balcão sobre o que comer e o que não comer diante de uma restrição.
Verifiquei, o quanto de importante para o somatório de meus conhecimentos em nutrição, tinham influenciado a minha experiência anterior para entender a ciência da nutrição. E que a técnica dietética e o conhecimento do alimento eram fundamentais para se colocar em prática o objetivo maior do nutricionista, a prescrição dietética.
Numa ordem inversa, assisto agora o interesse por um assunto que os currículos dos cursos de Nutrição esqueceram de incluir, a gastronomia e ainda as implicações do Food Service, o que sempre entendi ser uma falha. Minha intimidade com este assunto está pautada nessa vivência prática, mas principalmente por uma assessoria prestada ao Hotel Plaza São Rafael, onde em 1987, implantei um projeto ousado na transformação de uma cozinha tradicional para uma cozinha de montagem e também por ser membro da Confraria de gourmets Bella Távola o que me possibilitou a convivência com inúmeros chefs, gourmets e com profissionais de diversas áreas da alimentação, numa constante troca de conhecimentos e viagens filosóficas pelo mundo da gastronomia.
Diante disso, não posso deixar de manifestar a minha opinião e avaliar os temas propostos nos diversos cursos e congressos sobre gastronomia que começam a surgir, abordando assuntos que reprisam os já existentes nos currículos, importantes e obrigatórios sim, quando o enfoque é uma UAN, mas que não abordam ainda, a essência da gastronomia.
Se quisermos avançar por esta área devemos começar pelo resgate da história da gastronomia, que apesar dos poucos registros e da falta de bibliografia pertinente, ela existe.
Definições, introduzindo a Gastronomia
Na sua essência poderíamos dizer simplesmente que gastronomia é a arte e a ciência do bem comer. Para BRILLAT-SAVARIN, porém, gastronomia, é o conhecimento racional de tudo o que diz respeito ao homem quando se alimenta.
Seu fim é cuidar a conservação dos homens mediante a melhor alimentação possível. Dirigido a todos que pesquisam, fornecem ou preparam as coisas que podem se converter em alimentos.
Savarin, era filósofo e advogado por ofício, também conhecido pelos muitos aforismos que criou, é considerado o papa da gastronomia, seu livro Physiologie du goût, publicado em 1848, é a bíblia do gourmet, leitura obrigatória para quem se dedica a gastronomia. Nele, sabiamente e já naquele tempo, ele relacionava a gastronomia com a ciência, a física, a química, assim como a economia política.
Criou o que ele chamava o teste gastronômico, pois entendia que a comida é um verdadeiro e autentico tesouro cheio de prazer, de aventura e emoções e que todos aqueles que não brilhavam de desejo diante dela eram reprovados.
Do ponto de vista sociológico, podemos dizer que a gastronomia é a expressão máxima de um povo, pois reflete suas tradições culturais, costumes, crenças religiosas, hábitos alimentares, sua economia, seu clima e até geografia. Através dela, todas as manifestações históricas podem ser estudadas uma vez que a grande maioria das decisões políticas foram tomadas em torno de uma mesa ou em função dela.
Partindo desses pressupostos o resgate histórico da nossa culinária , mais especificamente o respeito a regionalidade para a manutenção dessa cultura através da gastronomia é fundamental. A Gastronomia não é como muitos pensam, sinônimo de sofisticação, exotismos e luxúria. Muito antes pelo contrário, é a valorização ao produto da terra, a manutenção da integridade dos alimentos, o respeito ao seu sabor e textura, a excelência dos alimentos e a sua soberania, sua característica muitas vezes é representada pela simplicidade do resgate da sua origem. Devemos isso as gerações futuras. Porém, sua formulação, combinação e alquimia, requer muita técnica, conhecimento, pesquisa e respeito às receitas clássicas e a sua nomenclatura original quando empregada comercialmente.
Quando se faz uma releitura de uma receita já existente, deve-se ter o cuidado de alterar seu nome. O emprego de adaptações culinárias são indispensáveis não só pela razão do gosto e paladar mas também por questões de saúde e por que não, de custos, principalmente quando as unidades de alimentação e nutrição assim o exigem. Isso para que, quando um gourmet pede, por exemplo, um prato em um restaurante como: Filé à Wellington, Coq au Vin, Filé de peixe ao thermidor ou à Fiorentina, Sopa de Trufas Elysée, Quiche Lorraine, Espaguete à la carbonara, Frango à Kiev e assim por diante, ele tem em mente a sua composição e combinação de ingredientes originais isto porque internacionalmente o prato é conhecido como tal, pela supremacia de seu sabor que foi registrado na lembrança cabendo ao seu executor apenas imprimir-lhe a sua versão respeitando as suas características.
É imperativo o respeito a sua autoria que nem sempre era o próprio cozinheiro, pois muitas vezes estes prestigiavam seus ilustres patrões, dando-lhes o nome de suas receitas.
História da Gastronomia
Para avaliá-la precisamos nos reportar aos primórdios da história, mais precisamente a Revolução Francesa. Lá, Napoleão embora não tenha sido considerado um gourmet, achava que uma boa refeição podia ser um instrumento valioso de diplomacia, segundo o resgate histórico relatado pelo sociólogo Ariovaldo Franco.
Nesses primórdios, sempre tiveram papel de destaque os grandes pensadores, filósofos, artistas das mais variadas artes, políticos e principalmente governantes que não abriam mão da boa mesa.
A palavra Gastronomia tornou-se uso comum na Europa, em 1801, mas desde 1623 já apareciam registros de sua existência, seu significado etimológico quer dizer a observância das leis do estômago.
Em 1835, The Académie Française tornou a palavra oficial, incluindo-a no dicionário e a partir daí ganhou o mundo. A grande enciclopédia Larousse Gastronomique, define a palavra como The art of good eating. Love of eating. Curnonsky, viveu de 1872 a 1956, era escritor, jornalistas, e gastrônomo francês, teve grande influência para a história da gastronomia, fundou a The Académie des Gastronomes, criou o termo gastronomades para designar turistas que são amantes das especialidades da culinária regional. Dizia, na boa cozinha tem as coisas tem o gosto do que são.
Já Pomiane, em 1875,médico, pesquisador e gourmet introduziu a Ciência da Arte Culinária e das técnicas gastronômicas, chamada na época de gastrotechnie, que ao conduzir uma pesquisa sobre digestão e dietética do Instituto Pasteur passou a interessar-se pelo assunto, que além de apreciador, criava as suas próprias receitas, tornando-se um dos mais populares escritores gastronômicos, escrevendo inúmeras obras no gênero.
Muito da história da Gastronomia para não dizer basicamente, foi feita por críticos gastronômicos, poucos dos grandes chefs souberam registrar com maestria suas receitas, porque elas eram guardadas a 7 chaves eram tratadas quase que como segredos de estados. Vautel, 1671, conhecido e“esnobe” jornalista gastronômico, dizia que a Gastronomia segue a moda e reflete atitudes sociais contemporâneas. Dizia que “a coisa curiosa é que o gastrônomo esnobe procura a simplicidade da clássica cozinha tradicional, rude e rústica , comendo o de melhor e exótico, pelas mãos de habilidosos cozinheiros.
Outro grande Chef Fernando Point, dizia que só se cozinha bem com amor, na medida em que se deseja, acima de tudo, criar em torno da mesa um clima de amizade e fraternidade, máxima citada por Bocuse.
Na China, no tempo da dinastia de Chou, mil anos antes de Cristo, cozinhar já era uma arte e as refeições eram revestidas de grande cerimônia. A China possui vasta literatura gastronômica, sábios, filósofos, pensadores políticos e poetas escreveram verdadeiros tratados sobre a alimentação resgatando as receitas culinárias daquele país. Confúcio, 550 a.C. era um grande gourmet e observador da cerimônia a mesa.
A história está cheia de registros em torno da mesa, falar sua importância é ser redundante, a preocupação aqui é apenas relembrar algumas dessas passagens e longe de esgota-la.
Requisitos para se aplicar a verdadeira Cozinha Gastronômica: ter um Chef gourmet ou gastrônomo
- Um gourmet, deve apreciar os produtos mais refinados da arte culinária e desfrutá-los com moderação. Pelo seu faro normal procura os pratos mais simples, geralmente os mais difíceis de preparar com perfeição, pois só desta forma descobre as verdadeiras delícias. Savarin acreditava ser este um requisito básico de um bom cozinheiro, viajar.
- Um gourmet, não necessariamente ele precisa ser um Chef ou cozinheiro, mas ele deve conhecer os métodos culinários o suficiente para julgar os pratos saboreados e reconhecer os ingredientes utilizados, de acordo com Savarin.
- Ambos devem conhecer profundamente a História da Culinária e dos alimentos e demonstrarem interesse por comidas exóticas e internacionais. Devem ser pesquisadores e analistas da culinária.
- Um verdadeiro Chef de cozinha, deve ter o talento de um pintor e de um arquiteto que zela pela sua obra-prima, é um artista e que geralmente não pensa no seu equilíbrio nutricional ou no quanto ela custaria, quando está criando.
- Devem explorar as sutilezas gastronômicas, gastando metade do seu tempo relembrando o passado gastronômico com satisfação e a outra metade calculando possibilidades gastronômicas, segundo Revel.
- Devem conhecer os princípios e regras de etiqueta e conduta social, além de cerimonial e protocolo se assim o emprego e utilização prática o exigir.
- Uma verdadeira cozinha gastronômica deve ter um Chef que conheça as regras da gastronomia. Nem sempre um bom cozinheiro pode ser um bom Chef.
A Evolução dos estilos de Cozinha
Consiste em aplicar um dos tipos de culinária e técnicas de preparações distintas em cada estilo de cozinha adotado na moderna gastronomia. Com a globalização ficou mais fácil a aproximação e as facilidades de ingredientes antes inacessíveis, da mesma forma que a mídia nos coloca em contato com hábitos e costumes antes desconhecidos. Para Paul Bocuse, em culinária não se inventa nada.
Cada vez fica mais difícil definir a origem e a autoria de uma receita. Escolher um estilo de gastronomia a ser adotado é uma tarefa que requer um amplo conhecimento do que se deseja atingir, o perfil do comensal entre outros fatores relevantes e que neste momento não são importantes serem definidos. De qualquer forma, tentamos reproduzir as diferenças dos tipos de culinária:
Cozinha Tradicional: Foi o tipo de culinária que predominou no mundo inteiro, tendo como inspiração a Cozinha Francesa e todos os seus conceitos. Caracterizava-se por preparações simples ligadas às tradições e aculturações, às crenças religiosas aos hábitos e costumes. Suas principais características são: muita gordura ; muita comida e fartura e principalmente longas preparações culinárias.
Nouvelle Cuisine: Surgiu em meados de 1960. Seu princípio é que a cozinha deve ser uma extensão da natureza, foi uma reação contra os excessos de temperos e das gorduras. Era a luta da inventividade contra o tradicionalismo. Fez uma verdadeira revolução nas preparações culinárias, introduzindo a chamada Cozinha Internacional. Suas principais características: pouquíssima comida, exotismo e arte; “montagem na hora” a cozinha arte e espetáculo; o marketing gastronômico; resgate e valorização dos produtos da terra.
A Cozinha de Mercado:
Introduzida por um dos grandes mestres da gastronomia francesa o Chef Paul Bocuse se confunde um pouco com a Nouvelle Cuisine. Prega como regra, que a definição de um cardápio jamais pode ser decidido previamente, só deve ser decidido depois de uma visita ao mercado, para seleção do que há de melhor no dia, com os produtos da época feita especialmente pelo Chef, na opinião dele isto é o que faz a diferença da boa cozinha. Segundo ele, a cozinha de mercado é uma volta as origens das tradições culinárias ao mesmo tempo que abre espaço para o novo, para a fusão de outras culturas, em suma reúne o novo com o antigo.
Cozinha Moderna do Food Service: Impulsionada principalmente pela mudança social, pela grande entrada da mulher no mercado de trabalho. Foi introduzida pelo advento dos pratos prontos industrializados ou pré-prontos, fornos de micro-ondas e elétricos. Suas principais características são: praticidade; economia; menor elaboração; rapidez no preparo. Entra aqui a quantidade na medida certa a busca pela saúde.
A Cozinha Gatronômica Hoje: Com exceção dos grandes restaurantes que fazem seu marketing em cima de um estilo próprio de culinária como: a Cozinha Francesa; a Cozinha Italiana, a Cozinha Alemã e assim por diante, chegando as chamadas Cozinhas “regionais” ou Típicas; a tão descaracterizada Cozinha Brasileira neste país de proporções continentais; onde a cultura é incandescente, não podemos esquecer das raízes, da Cozinha Religiosa.
Há uma verdadeira revolução nos estilos gastronômicos empregados, esse novo ingrediente que passou a conviver com a gastronomia fundindo novos hábitos, introduzindo novos valores são impossíveis de serem ignorados que é o Food Service. É a convivência do novo com o antigo como já dito por Bocuse.
Os Serviços
Os estilos de serviços, fundamentais para a compreensão e aplicação do estilo de Cozinha a ser adotado, pois a partir deles os critérios para a escolha adequada da decoração, louças e utensílios são definidos. São eles:
- Serviço à la carte: o tradicional;
- Serviço de bufê: o preferido e o método mais utilizado em todas as áreas da gastronomia,
modificou os hábitos e costumes
- Serviços “empratados”: que sem dúvida representam uma nova visão comercial moderna;
- Serviços de rodízio: o mais recente método e talvez seja invenção brasileira.
Aplicação na prática da Gastronomia com a Nutrição
Uma única justificativa tenho ouvido em relação ao interesse pela introdução dos conceitos da gastronomia em uma área específica da nutrição, a hospitalar, apenas impulsionado pelo desejo de ver melhorar o sabor das refeições apresentadas aos pacientes.
Não acredito que o fato de se contratar um Chef de Cozinha com o objetivo de implantar uma Cozinha Gastronômica e inserir tais conceitos na UAN hospitalar possa modificar essa realidade. Outros problemas poderão advir dessa convivência de estilos de chefia, a do Chef de Cozinha formal com a nutricionista, as questões de diferenças funcionais que precisam ser resolvidas, mesmo que com funções distintas. Será que este é o melhor caminho?
Enxergo a aplicação prática da gastronomia na nutrição com algumas reservas e muita atenção, pois ao meu ver, se a aplicação da gastronomia em UAN, destina-se as áreas da alimentação saudável para pessoas normais, não tenho a menor dúvida da sua utilidade e da necessidade dessa mudança e aplicação imediata, agora quando se trata da área da saúde, com restrições dietéticas, recomendaria muita prudência.
Aplicar os princípios puros da gastronomia com conceitos nutricionais que envolvam saúde vai requerer muitos ajustes de ambas as partes dos profissionais envolvidos, devido às inúmeras incompatibilidades conceituais. Se de um lado temos um artista, um arquiteto que ao elaborar a sua grande obra prima não pensa em equilíbrio de nutrientes e nos custos de sua obra, de outro temos o profissional nutricionista pensando em todos esses itens. De qualquer forma, toda essa discussão é um avanço sem dúvida e toda mudança mesmo que implique em posteriores ajustes deve ser bem vinda.
Devemos começar a falar mais sobre:
- Culinária e nomenclatura técnica: pois só através dela é que vamos conseguir implementar em nossas UAN’s uma verdadeira gastronomia.
- Cerimonial e protocolo e a sua aplicação em UAN.
- Etiqueta, conduta e comportamento profissional e social
- Aspectos de gestão e noções de empreendimento e estratégias empresariais.
- Tecnologia de alimentos, de máquinas e de equipamentos
Devemos começar a valorizar a área da produção e nos imbuirmos que ela deve andar junta com a área clínica para que possamos efetivamente compreender o processo da alimentação e todas as suas implicações como um todo.
E, principalmente que a nutrição deve deixar de ser segmentada, pois a caixa preta do nutricionista sem dúvida nenhuma é a prescrição dietética.
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